Na sua obra “Principais correntes do marxismo: a era de ouro” (Vide Editorial, 2022), o filósofo polonês Leszek Kolakowski destaca a observação formulada por Max Weber, pai da Sociologia, “de que qualquer democracia, simplesmente por ter um sistema representativo, tende a ver o desenvolvimento de uma burocracia que com o tempo se torna uma força independente, a senhora do eleitorado e não a sua servidora”.
A pensadora esquerdista Simone Weil, que abraçou o cristianismo ao longo da vida e morreu quase uma santa, abordou o mesmo problema sob uma ótica distinta no seu texto “Pela supressão dos partidos políticos” (Editora Âyiné, 2021), no qual denunciava a corrupção de toda máquina partidária, numa democracia ou não, a qual passaria a atuar em prol de seus próprios interesses faccionais, em vez dos da sociedade a qual deveria trabalhar.
A tese de que toda burocracia, independente de surgir com boas intenções ou não, degenera com o tempo de uso, vindo a atender ao seu próprio funcionamento, em vez da sua missão original, é antiga, mas parece se confirmar com mais intensidade nas últimas décadas do século XX e no início do século XXI.
A estrutura burocrática autocentrada, chamada “Deep State” nos EUA ou “máquina pública” no Brasil, assistiu a um progressivo inchaço desde a Primeira Guerra Mundial até os dias atuais.
O Leviatã estatal, no mundo inteiro, progrediu sob a bandeira tecnocrática ou socialdemocrata, abarcando cada vez mais responsabilidades da sociedade civil sob o manto (a desculpa) da prestação de serviços e políticas públicas de proporções e complexidade cada vez maiores.
Na escala global, instituições como a ONU, o Banco Mundial e a União Europeia despontam como imensas burocracias supranacionais, cujas agendas e ramificações se tornaram por demais remotas e obscuras para as populações cujos países transferem impostos dos seus bolsos para financiar burocratas anônimos, por vezes mais poderosos do que os políticos eleitos nas suas próprias nações.
As disfunções dessas megaestruturas, porém, mesmo das imensas burocracias nacionais, com suas visões e pretensões próprias, já se manifestam até em democracias maduras como as dos EUA.
Durante o governo Trump, pipocaram, na grande imprensa, relatos de burocratas civis e militares que se insurgiram contra as decisões do então presidente eleito; seja mentindo o número de tropas alocadas pelo Departamento de Defesa na Síria ou quando um general norte-americano do Estado Maior telefonou para sua contraparte chinesa comprometendo-se a não obedecer a qualquer ação “mais radical” que viesse a ser ordenada pelo seu comandante-em-chefe.
Atitudes semelhantes, em décadas passadas, seriam impensadas, constituiriam crime de alta traição, porém, em tempos entrópicos vivenciados pelas modernas democracias ocidentais, ressoam apenas como notas na velha mídia.
Essa entropia, presente no Brasil e no mundo, manifesta-se de diversas formas daninhas: instituições públicas a princípio apartidárias se aliando a partidos de esquerda, cujas agendas costumam garantir e promover o agigantamento do Estado; estruturas burocráticas públicas e oligarcas privados trabalhando juntos na construção de narrativas que mascarem seus interesses egoístas como se fossem os anseios da população em geral, enquanto transferem a renda da classe média e dos mais pobres para seus cofres, via uma carga tributária expansiva e um endividamento público crescente.
Essa doença ameaça destruir por dentro as democracias ocidentais, a exemplo do já verificado em ditaduras passadas, como a soviética, cujo classe dirigente, o Politburo, afastou-se tanto dos interesses da sociedade que, por fim, o sistema inteiro ruiu de podre.
Pode chegar um momento que nem mesmo a agenda reformista de candidatos majoritários como Trump ou Bolsonaro possam corrigir o tamanho imprudente do Estado, possibilitando uma saída mínima capaz de reconciliar a ganância das elites com as desilusões de uma população sujeita a serviços públicos cada vez mais degradados, espoliadas na sua renda via tributos crescentes, oprimida nos seus sonhos de mobilidade social sob o peso mastodôntico de uma máquina pública viciada.
Nesse sentido, o Brasil desponta, muito mais do que os próprios EUA, como um sinal de alerta para o ocidente.
Afinal, não foram as revoltas populares ocorridas no Brasil, em 2013, fruto de um povo exaurido pela cobrança de impostos de padrão europeu, em troca da prestação de serviços públicos lamentáveis, por parte de um Estado egocentrista, cujas despesas correntes, de pessoal, em muito comprometem sua real capacidade de atuação?
George Orwell ficaria consternado em constatar como Animal Farm e 1984 continuam cada vez mais contemporâneos.