Democracia excludente
A luta política atual não é mais entre direita e esquerda; em essência, torna-se cada vez menos entre conservadores e revolucionários (socialistas, liberais, terceiro posicionistas).
No século XXI, essa luta assume curiosos contornos e ecos da política interna da Roma Antiga, atualizada para os tempos pós-modernos e pós-democráticos da nossa contemporaneidade[1]: uma vez mais, como à época da República e do Império Romano, o confronto se origina em elites gananciosas e autoindulgentes, incapazes de compartilhar sequer migalhas de influência política com o cidadão comum.
Herdeira dos romanos de outrora, a civilização ocidental do presente vivencia esse impasse causado pelos oligarcas do grande capital financeiro e produtivo transnacional (chamados “globalistas” pela direita conservadora e “imperialistas” pela esquerda trabalhista). São os descendentes de uma parcela parte da burguesia europeia dos séculos XVIII e XIX, a qual destronou a aristocracia oriunda da Idade Média, nas revoluções que lançariam as bases da Ordem Mundial Liberal, consolidadas na campanha vitoriosa, das democracias liberais do Ocidente, na Segunda Guerra Mundial.
Essas elites forjariam o mundo da Guerra Fria, em confronto com a tirania soviética e a loucura maoísta, estabelecendo instituições de governança global, como: a Organização das Nações Unidas, a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização Internacional do Trabalho, a Organização Mundial do Comércio, entre outras.
Vencida a Guerra Fria na década de 1990, essa elite liberal-iluminista cooptaria a esquerda mundial, passando a financiá-la, com sucesso, para abandonar a agenda trabalhista do passado (bandeiras de melhoria das condições de vida dos trabalhadores: a maioria da população) em troca de uma agenda social-liberal (pró-direitos individuais destinados a dividir a população em nacos identitários cada vez menores e, portanto, mais fáceis de controlar, lançando uns contra os outros).
Com seus imensos recursos financeiros, essas elites, supostamente “iluminadas”, compraram todos os meios de controle político e cultural no Ocidente: partidos políticos centristas e progressistas, academia, mídia, artistas, universidades, centros de pesquisa; infiltraram e ampliaram o poder regulatório dos Estados liberais.
Uma forma de criar barreiras à competição para empreendedores menores, instituir “migalhas” assistencialistas para anestesiar as demandas sociais dos mais desvalidos e direcionar o peso da carga tributária contra as classes médias, canalizando sua riqueza, via programas de “investimento” para os gigantes bancários e os oligopólios transnacionais.
Sua obra suprema foi o teatro institucional que estabeleceram sobre as fundações das democracias liberais, que alegavam representar a vontade popular, quando, na verdade, impunham um “teatro eleitoral das tesouras”: dois ou mais partidos políticos dotados, nos pontos essenciais, da mesma agenda política, alternando-se no poder para nada mudar ou avançar de autêntico nas suas sociedades, enquanto vendiam como populares as bandeiras que interessavam somente às elites: livre circulação de capitais; impostos escorchantes aplicados sobre o povo, transferindo o grosso da sua renda, via Estado liberal, para essas mesmas elites; agendas progressistas para melhor dividir e sufocar a classe trabalhadora.
Contudo, a população começou a sentir no bolso a deterioração do seu padrão de vida por essa agenda liberal.
Se no século XX, as famílias aspiravam superar, com seu esforço e trabalho, os frutos alcançados pela geração anterior, a partir da virada do milênio, o cidadão comum, nos países desenvolvidos, lutava agora para sobreviver e não mergulhar na carestia.
No rescaldo desse confronto crescente entre os interesses divergentes das elites e do povo, despontou a reação popular, com a votação do Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia) e a emergência de líderes e partidos políticos populistas – ou populares – no mundo inteiro: Trump, Farage, Orbán, Bolsonaro, Bukele, Le Pen, entre outros.
As elites liberais entraram em pânico diante desse movimento contrarrevolucionário espontâneo, orgânico, popular.
O Ocidente vivencia, nesse momento, as consequências da resposta desesperada dessas elites: censura e regulação das redes sociais e mídias alternativas, perseguição judicial contra oponentes, interdição de partidos e candidatos antissistema, desumanização dos adversários... A lista é interminável, no Brasil e no mundo.
Os liberais gritam contra uma suposta “polarização”, pois não desejam ceder sequer pequenos nacos do imenso poder que amealharam nos últimos séculos.
Fingem esquecer que o oposto de polarização é hegemonia.
A mesma hegemonia que desfrutavam, incontestes, até as revoltas populares eclodidas, pelo planeta, a partir da década de 2010, justamente contra o modelo de sociedade que sonham impor a nações inteiras, o qual não serve a ninguém, exceto aos seus próprios interesses.
De fato, o conflito entre elites liberais e povos (em sua maioria, conservadores) somente será apaziguado quando os atuais senhores da Ordem Mundial Liberal aceitarem que as sociedades não existem apenas para servi-los, mas também, devem atender, ainda que minimamente, as aspirações e esperanças das suas respectivas populações.
Até lá, a guerra continua.
[1] (Hipólito, 2024).