Um novo César para um novo milênio
“Não deveria ser nenhuma surpresa que um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descubra que a classe trabalhadora os abandonou”.
Senador Bernie Sanders, político socialista dos EUA
“O Partido Democrata é o partido que apoia as causas identitárias, o wokeismo. E isso é pouco. Não contesta o establishment e virou um partido das classes médias universitárias”.
Alberto Cantalice, presidente da Fundação Perseu Abramo, do Partido dos Trabalhadores (PT)
Seria possível o despontar de uma forma atualizada de cesarismo no Ocidente, em pleno século XXI?
Para responder essa pergunta, necessita-se, inicialmente, retornar aos longínquos dias da República Romana, que precederam a ascensão do lendário general e político Júlio César ao poder na Urbs Aeterna (em português: Cidade Eterna) e o consequente despontar da sua fase imperial, a partir de 27 a.C.
É importante compreender o funcionamento da Roma Antiga para uma comparação realista em relação ao Ocidente moderno – guardadas todas as diferenças de natureza social, econômica, política, tecnológica, cultural e informacional verificadas nesses dois milênios –, para se depreender as curiosas similaridades existentes entre a queda da República Romana e a crise atual das sociedades ocidentais.
Ressalta-se que os fatores que explicam o sucesso de Roma – aqueles que impulsionaram sua irrefreável expansão de uma vila insignificante da Península Itálica à capital do império fundacional do Ocidente – já carregavam, em seu âmago, as fontes dos muitos problemas responsáveis pelo posterior colapso do modelo republicano e sua substituição pela solução imperial.
Em linhas gerais, esses fatores advinham das próprias características peculiares da elite romana, formada por uma aristocracia guerreira, religiosa e agrária, fortemente orientada ao acúmulo permanente de riqueza e poder, representado pela conquista incansável de terras, inicialmente, das vilas e aldeias vizinhas, até alcançar outros reinos e povos, passando da Itália para a Europa, as Ilhas Britânicas, a África e o Oriente Médio.
As estruturas políticas da República seguiram o caráter particular dessa elite constituída por generais e magistrados, senhores de vastas extensões de pasto e plantio.
Militares de patente inferior e pequenas famílias nativas detinham propriedades menores; contudo, à medida que Roma incorporava novas regiões e escravizava suas respectivas populações sob a força marcial das suas legiões, um crescente fluxo de imigrantes forçados (aprisionados) de baixo custo viu-se direcionado ao trabalho rural, antes ocupado, em sua maioria, pelo romano comum, achatando a massa salarial dos locais remanescentes.
Com o tempo, a competição dos escravos, cuja compra, na maior parte das vezes, só era possível de ser custeada pela aristocracia, tornou predatória sua competição contra as pequenas propriedades.
A elite então se aproveitou para adquirir os domínios menores, ampliando seu estoque de terras e, por conseguinte, seu poder econômico e político.
Essa conjunção de fatores levou à expulsão de grande parcela da plebe do campo, em direção às cidades, onde o povo romano tornava a enfrentar a concorrência dos escravos – importados das fronteiras da República – pelos empregos disponíveis.
Uma vez mais, a aristocracia se beneficiava, já que detinha a maioria dos imóveis urbanos, alugando-os, ao populacho, por valores elevados.
As dificuldades financeiras de uma plebe pressionada sob o fardo de uma imigração fora de controle serviram, ainda, para alimentar a usura das elites.
Brutus, o famoso traidor e assassino de Júlio César era conhecido, no crepúsculo da República, por cobrar juros de até quatrocentos por cento dos populares, uma prática disseminada pelos aristocratas em geral.
Estes estabeleciam diversas regras e tradições de forma a assegurar seu controle férreo das instituições romanas. Uma das mais excludentes era seu desprezo pelo trabalho assalariado. De fato, os principais cargos e funções públicas, como o de senador, não eram remunerados.
Destarte, somente os ricos podiam exercer atividades públicas, já que um cidadão comum não conseguia sobreviver afastado, economicamente, dos seus afazeres diários.
Em outras palavras, somente as elites podiam se entregar ao ócio e ao serviço público. De fato, viam a ociosidade como uma das suas maiores virtudes, capaz de ser desfrutada somente pelas melhores famílias da República.
Essa realidade esnobe se expressava na própria autodenominação adotada pelos aristocratas: “Ótimos”.
Para eles, o resto do povo romano consistia numa gentalha a ser explorada, cuja existência, permanecia, infelizmente, necessária à manutenção da sociedade, suprindo, em especial, as atividades não delegáveis aos escravos, como o serviço militar nas fileiras das legiões e a bordo dos navios de guerra da República.
Contudo, a mesma expansão militar e regional que trouxera riqueza crescente à Cidade Eterna – mediante a conquista de multidões de escravos (mão-de-obra barata) e de novos domínios adicionados às terras dos aristocratas – viria também a afetar a estabilidade social de Roma, com a redução das oportunidades de emprego e das condições de vida da plebe.
Nos corações e mentes de uma elite instruída na filosofia grega clássica, especialmente no conceito platônico da tirania (quando um membro da elite toma para si a insatisfação da plebe de forma a utilizá-la para obter o poder supremo, submetendo o restante dos “Ótimos”, em troca da promessa de redistribuição de uma parcela da riqueza ao homem comum), esse caldeirão de instabilidade política e social fez emergir uma temida força de oposição ao status quo: os populistas, ou “Populares”.
Antes da queda da República, algumas reformas pontuais seriam tentadas pelos “Populares”, temorosos de que, sem um mínimo de concessões ao povo, o sistema inteiro terminaria por ruir.
Contudo, a elite, em sua maioria, resistiu e, por fim, esmagou todas essas tentativas, tais como: a dos irmãos Graco ou a liderada por Caio Mário, um ascendente de Júlio César.
Ironicamente, o êxito dos “Ótimos” em sufocar os esforços reformistas pavimentou o caminho à tirania cesarista.
Afinal, ao negarem a possibilidade de uma solução negociada com a plebe, lançaram as bases para uma sublevação populista, permitindo o surgimento de um tirano capaz de remodelar as instituições, disposto a dobrar o poder das elites, reduzindo, assim, a pressão social gestada pela insatisfação popular.
Estavam dadas as condições para a entrada triunfal, na cena política romana, um tirano populista no papel de salvador do homem comum, um “messias” capaz de enfrentar a ganância dos “Ótimos”.
Bastava um político arguto, corajoso e determinado tomar as rédeas da situação em benefício próprio, um aristocrata de uma influente e tradicional família romana. Assim, nasceu a lenda de Júlio César.
Fosse ele um patriota, genuinamente, preocupado com a imigração massiva de escravos, o endividamento crônico dos homens comuns ou a concentração exagerada de riquezas pelas elites; um mero demagogo e tirano, conforme denunciado pelos senadores que viriam a assassiná-lo; ou, talvez, o mais provável, uma combinação indistinta de ambos os casos, César lançaria Roma numa cruenta guerra civil, cujo desfecho seria a reconstituição da República em Império, uma instituição capaz de balancear melhor os interesses da elite com as expectativas da plebe.
Para o leitor atento, percebem-se certas semelhanças curiosas, guardadas as devidas proporções, entre as crises vivenciadas pela Roma Antiga e o caos experimentado pelo Ocidente do século XXI.
Imigração descontrolada. Fronteiras instáveis. Endividamento crônico. Achatamento salarial. Crise imobiliária. Mercado de trabalho tensionado. Elites arrogantes e gananciosas, desconectadas do cidadão comum.
O mundo moderno parece aferrado a um círculo vicioso, sob condições estranhamente familiares àquelas que fizeram despontar o cesarismo e o fim da República Romana.
Estaria o Ocidente destinado a se tornar uma tirania reformista, populista e demagógica? Seria esse o único desfecho possível a uma sociedade moderna em conflito? Um novo Júlio César e um novo Império estariam despontando no horizonte?
Quando as elites ocidentais, uma eleição depois da outra, teimam em se referir ao povo como “cesto de deploráveis”, “lixo” e outros impropérios carregados de prepotência e nojo – ou, no Brasil, a nata do progressismo nativo promove, desavergonhadamente, o termo “pobre de direita” –, nossos atuais “Ótimos” parecem esquecer as lições da história, arriscando o retorno de um novo tirano populista.
Dessa vez, possivelmente, ainda mais radical e imprevisível do que o velho César.